quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

2012 e qualquer coisa assim

Querido Papai Noel, o mundo vai acabar. Daqui alguns dias, tudo que nós conhecemos vai mudar ou deixar de existir. Em algum momento, com algum fenômeno sobrenatural, tudo vai acabar. Vidas, sonhos, amores, fortunas. Tudo. Fim. Mas tudo não acaba todo dia, Papai Noel? Todos os dias, pessoas morrem, amores desaparecem, fortunas se vão, tudo muda. Todos os dias, acordamos sendo uma pessoa, e dormimos sendo outra. O mundo sempre acaba. O mundo já acabou. O mundo sempre começa. E já começou.
Querido Papai Noel, eu queria pedir tanta coisa. Eu não quero pedir a paz mundial. Eu não quero pedir mais tempo para o mundo. Ele já teve tempo demais. E não teve tempo nenhum. Querido Papai Noel,eu não quero que o mundo acabe. Eu não quero o fim. Mas o fim já chegou tantas vezes, de tantas formas. Um fim de namoro. Um amigo morto. Um emprego perdido. Não são estes um fim do mundo, para cada pessoa envolvida? O desespero do fim repentino de um amor, a tristeza pela vida tomada antes da hora, uma fonte de renda que se foi. Não são situações que marcam fins? Querido Papai Noel, o mundo ressurge. Você conhece alguém novo. Um novo amigo aparece. Uma nova empresa te contrata. O mundo acaba e começa novamente. Eu queria entender esses ciclos. Não queria passar por tantos. Eu posso pedir isso, Papai Noel? Eu posso pedir que tudo não se repita tantas vezes? Eu posso pedir alguma coisa?
Querido Papai Noel, eu quero ter dinheiro. Eu quero sucesso. Eu quero poder comprar as coisas que eu sonhava ter, as coisas que pedi em outras cartas que não escrevi. Eu não quero que o meu ciclo acabe. Eu não quero ser mais uma repetição. Eu não vou pedir milagres natalinos, amor, paz, amizade, e tantas outras coisas que tantas outras cartas sempre pedem. Eu nem sei se vou pedir alguma coisa. Eu só quero não ser mais um a pedir tantas coisas que nunca chegam. Eu só quero o direito de querer. Eu só quero poder. É pedir muito, Papai Noel?
Querido Papai Noel, eu queria que meu pai ganhasse tanto dinheiro quanto ele trabalha. Queria que ele tivesse o reconhecimento que ele merece. Eu não sei o que ele quer. Eu só queria que ele tivesse as coisas que ele quer. Quantos outros pedem por seus pais? Eu só quero que esse ciclo não acabe. Eu só quero tê-los para sempre. É Natal, eu posso fazer esse tipo de pedido. Eu queria que minha mãe se desse bem com a mãe dela. É triste ver um ciclo que se fecha assim. É triste saber que o meu irá se fechar assim. Eu posso parar o tempo, Papai Noel? Eu posso tentar evitar o inevitável?
Querido Papai Noel, e se o mundo não acabar? Além do que já acaba todos os dias. E se tudo continuar? Seremos diferentes das mesmas pessoas que nunca fomos. E se acabar? Se esse for o ciclo final, o que nos resta? Aproveitar uma semana? Viver esse pequeno resto de vida, na esperança de chegar satisfeito ao fim? Nunca aceitaremos o fim. Não fomos feitos para morrer. Fomos feitos para viver. Mas não fomos feitos para saber viver. A imortalidade não é tão desejada porque temos medo da morte, mas sim porque temos medo da vida. Sempre há o que fazer, sempre há algo a ser corrigido. Nosso tempo de vida nunca é o bastante. Não queremos perder a juventude. Não queremos perder nossos pais. Não queremos perder nossa família. Não queremos perder. Eu posso viver para sempre, Papai Noel?
Querido Papai Noel, eu quero a eternidade de momentos. Eu quero a fugacidade de uma paixão. Eu quero as lembranças de uma juventude. As saudades da velhice. Eu quero viver. Eu não quero arrependimentos. Eu não quero desejar a imortalidade. Eu quero aceitar meu fim. É querer demais? É sonhar demais, Papai Noel? É esperar demais?
Querido Papai Noel, eu quero esperança. Esperança de que as coisas irão mudar. Esperança de que as coisas continuarão sendo as mesmas. Esperança.
Querido Papai Noel. Você não existe. Você não lerá esta carta, assim como não leu todas as outras milhares que lhe foram enviadas. Cartas sem um endereço. Cartas com um conteúdo. Com uma idéia. Cartas pedindo por uma vida. Cartas escritas por pessoas que esperam seus sonhos.
Querido Papai Noel. Eu quero viver.

domingo, 23 de setembro de 2012

Uma noite qualquer

Alguma coisa faz barulho lá fora. Trovão, fantasma ou ladrão. Não sei. Meu cachorro não late. Já latiu tanto por tão menos.
O som me lembra o de algo sendo arrastado, mas, ao mesmo tempo, o som de crianças brincando. E meu cachorro não late. Já latiu tanto o dia todo.
Tem algo lá fora que me incomoda, e eu não sei dizer o que é. Algo que me irrita, algo que tira o meu conforto. Estou no meio das minhas cobertas. Um relâmpago repentino ilumina meu quarto. Penso ver alguma cena digna de filme de terror, em meio às sombras. Galhos retorcidos, ou algo assim. Mas não. Não vejo nada. A dúvida incomoda mais que a certeza. Não ver nada não me dá segurança alguma.
Outro relâmpago, esse mais longe. Só ouço, segundos depois, o trovão. O barulho se repete. Já não lembro mais se ouvi mesmo um barulho ou se quis ouvir. Dessa vez, mais próximo. Já dentro da casa. Já além do alcance de meu cachorro. Escuto minha mãe andando em seu quarto. Deve ter acordado com os anúncios de chegada da tempestade. Como não acordar?
Já há algum tempo que não ouço mais barulho algum, além do som das gotas de chuva no telhado. Não ouço o choro do meu cachorro. Não ouço os roncos de meu irmão. Não ouço os passos de minha mãe. Não ouço mais nada. Apenas o silêncio frio e abafado de uma noite de chuva de setembro.
Tento sair da cama. Não acho meus chinelos. Não estão no lugar onde sempre ficam. Não gosto de ficar sem eles. Vou para a cozinha. Tomar um copo de água, olhando a chuva pela janela. Ouço um pequeno som, quase um estralo, atrás de mim. Não vejo nada, ao me virar. Apago a luz da cozinha. Alguns metros no escuro até meu quarto. A porta está fechada. Eu a deixei aberta. Deve ter sido o vento que passou pelas janelas fechadas. Entro em meu quarto. Ao me deitar, tropeço em algo. Meus chinelos, em seu lugar de sempre. Ouço um trovão. Não um trovão qualquer. O trovão. Aquele que anuncia o ponto alto da tempestade. Aquele que explicita o ápice da turbulência. Aquele que faz com que as crianças pulem de suas cadeiras. Aquele que assusta. Aquele trovão.
Não enxergo nada em meu quarto. Os trovões se tornam mais constantes, mas ao mesmo tempo, se tornam mais fracos. Começo a sentir frio, mesmo suando. Mesmo fracos, eles são longos o bastante para serem os maestros da tormenta. Começo a ouvir agora o vento. Forte vento. Bruto vento.
A eletricidade deve ter acabado, pois eu escuto o ventilador de meu irmão parando de girar. Ouço um barulho na porta da sala. Ela se abre, soltando dentro da casa todos os barulhos da tempestade. Todo o vento, toda a água, todos os trovões. Um relâmpago ilumina meu quarto. Ouço o mesmo barulho do resto da noite, agora Maia bem definido. Ouço passos. Meu cachorro late...

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

nublado, chuvisco e prédios

Menina, olhando para esse céu eu lembro de você. Eu lembro das esquinas. Eu lembro dos carros. Eu lembro da chuva. Lembro dos seus olhos.
Menina, há anos não te vejo. Não vamos mais às mesmas aulas. Não pegamos mais os mesmos ônibus. Menina, há anos não te esqueço. Sempre me lembro de você, olhando para esse céu nublado, de todo fim de Setembro. Não passo por aquela rua sem me lembrar de quando eu descia ela com você. Todo fim de tarde, menina. Três vezes por semana. E você ainda me fazia a graça de faltar.
O que aconteceu, menina? Eu prometi não sumir. A escola já não está mais lá. Eu saí de lá, me formei. Já não vou lá há algum tempo. Faço hoje o curso que dizíamos querer. Estou hoje onde dizia querer estar. Sou hoje quem eu queria ser. Mas não, menina. Nada correu como eu queria. Nada nunca corre como queremos.
Eu te encontrei há algum tempo. Você me disse ainda querer as mesmas coisas. Me disse ainda ter os mesmos planos. Me disse ainda ser a mesma pessoa. Não queria, não tinha, não era.
O que aconteceu, menina? O que foi feito de nós? O que nos tornamos? Você prometeu ligar. O que sobra é a dúvida.
Não olho para esse céu sem pensar no que foi. Não vai voltar, menina. Nada volta. Nunca. O que sobra é a memória. A memória das tardes, das esquinas e dos prédios. Eu espero te encontrar por aí, numas dessas trombadas que a gente sempre dá com velhos conhecidos. E espero que não sejamos tão velhos conhecidos assim.
É nessa época, é nesse céu de setembro-quase-outubro que eu sinto sua falta. Que passo naquela mesma rua, e me lembro de te ver de costas, subindo no último ônibus. Você não olhou para trás. Ou olhou. Ninguém olha. Eu olhei. E te vi, mais uma vez, uma última vez, em mais um fim de tarde, entre o nublado, o chuvisco e os prédios.

domingo, 26 de agosto de 2012

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Há sete anos eu peguei 3 reais na carteira da minha mãe. Fui locar um filme. Tinha acabado de chegar o "novo filme do Batman". Meu irmão já tinha assistido, tinha falado que era legal, peguei ele mesmo. Assisti, fiquei todo empolgado. Tinha sido um "filme de super herói muito legal". Passou o tempo, e eu nem lembrava direito desse filme mais.
Há quatro anos, Heath Ledger morreu. O máximo que eu sabia sobre a tal continuação era que ele seria o Coringa. Fui assistir com meu pai sem nem lembrar direito do primeiro filme. Saí de lá espantado com o Coringa, até coloquei "why so serious" no subnick do msn. Um personagem genial, um filme genial, um diretor genial, tudo genial. Passou, ficou para trás assim como o outro.
Anunciaram o final, o terceiro filme. Assisti os dois primeiros de novo, vi que não tinha entendido porra nenhuma da primeira vez.
Há seis horas eu peguei uma fila de cinema. Para ver um show de efeitos especiais, mais um capítulo da saga do "cavaleiro das trevas". Três horas depois, acabava, Tudo. Acabava a história, acabavam sete anos. Sete anos atrás, eu ouvia Green Day e Avril Lavigne e jurava ser "do rock". O Batman era novo, e eu também. Jogava bola na rua, pegava três reais da carteira da mãe e ia locar um filme. Quem é que ainda loca filmes ?
Quatro anos atrás, eu morava em Rondônia, ouvia The Killers, jogava Guitar Hero, e achava que ser rebelde era não fazer as tarefas de literatura. O Batman era mais sinistro, e eu, eu não sei. Hoje, eu não sei mais aonde moro. Não pego mais três reais com minha mãe. Não jogo mais bola na rua. Não jogo mais Guitar Hero e muito menos me acho "do rock".
O Batman envelheceu. O Batman se tornou incerto. Eu não sei se envelheci. Se cresci. Ou se não foi nenhum dos dois. Se o tempo simplesmente passou. Há seis horas eu fui um menino de 11 anos, um falso rondoniense de 14, e um perdido de 18. Há seis horas, eu vi mais que um filme. Eu vi uma parte da minha vida, mesmo que não na tela. Há seis horas eu entendi, de onde vem todo o peso na voz de quem diz que "o tempo passa, meu filho". Ou acho ter entendido.
Os filmes acabaram, os anos se passaram. E agora, José ?

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Para uma professora.

Bem, parabéns, minha eterna professora. Há algum tempo não nos falamos. Não costumo ser nostálgico, ou dizer que sinto falta de alguma época de minha vida. Gosto de aceitar que tudo que passou, passou, e tento tirar o que posso e o que consigo de tais momentos, para ter boas lembranças deles depois. As lembranças nem sempre são boas. Mas, o que nessa vida que é sempre bom ?
Mas, não nego, sinto falta de suas aulas, de quando seus ''julhos'' somavam menos do que somam hoje. Não costumo sentir falta dos colégios que estudei. Não é não sentir. O Brasil ainda não tinha sido eliminado pela Holanda. Neymar ainda era só mais uma promessa. Restart ainda eram "os coloridinhos", e gostar deles era feio e bobo. A idade do Vinicius era desconhecida, eu saía de meus 15 anos, jurando me revoltar contra o mundo. Descobriram a idade, eu não me revoltei, Neymar cresceu, Restart ainda está aí, e Felipe Melo tomou a culpa da eliminação. Exemplos bobos, para uma simples frase. O tempo passou, minha professora. Muito, para mim. Para você, eu não sei.
Nós certamente não somos mais o que éramos naquela época. Você nos ensinava. Não sei se posso falar pelo resto daquela turma. Mas para mim não era só geografia, geopolítica, ou qualquer outra matéria que tenha sido discutida em sala. Não era uma aula qualquer. Não era uma professora qualquer. De nossos encontros tirei coisas que ainda levo comigo, e que pretendo continuar levando. Não me lembro de muitas partes da geografia. Dormi, sim, em mais de uma ocasião. Não lembro de tudo e mentiria em dizer que lembro. Mas o que eu lembro, me agrada até hoje. Bons tempos que passaram há tanto tempo, tão pouco tempo.
Eu usava um aparelho na coluna e você usava saias gigantes. Eu por trás de meus óculos, e você com seu all-star. Eu via, e vejo, em você, uma professora que extrapolava as barreiras da sala de aula. Uma pessoa que extrapola as barreiras da vida. Talvez fosse mera admiração pela irreverência. Não sei. Talvez fosse puramente admiração. 2010 me foi um ano diferente. Foi um ano novo. E eu gosto de lembrar que passei, mesmo que pequena parte dele, em suas aulas. Não costumo sentir falta de colégios, não costumo elogiar professores. Mas em tudo, se tem uma exceção. Você foi uma exceção, em um ano de "vocês precisam estar prontos para o vestibular !". Não sei se teria o mesmo fascínio, não fosse a interrupção repentina de suas aulas. Mas, novamente, não gosto de pensar no que poderia ter sido. Gosto de pensar no que foi. E foi algo único, ter você como professora.
Não acho que eu possa dizer algo que você nunca tenha ouvido, mas eu digo, que você seja sempre a extrapoladora de barreiras. Que sua presença seja sempre tão agradável e construtiva para tantos outros como foi para mim. Felicidades, professora. Mestra. Referência. Um feliz aniversário.

domingo, 22 de julho de 2012

domingo, 15 de julho de 2012

Para:

Tudo movimenta. Todo movimento. Tudo envelhece. Todo envelhecimento. Toda sensação. Todo sentimento. Todo aborrecimento. Tudo, todo. Todo tudo. É luz, é claridade. É corrida, é obesidade. É a roça dentro da cidade.
Venta frio lá fora. Venta lá fora. Venta. Lá. Fora. Fora de mim, fora de si. O vento que passou em toda a cidade, dobrou em toda esquina. O vento que leva o sujo e deixa o novo. Não leva, não deixa. Não é sujo, não é novo. O vento vem e vai. Daqui eu vejo a poeira. São três da manhã e você em pé no escuro, com sua individualidade urbana. Essa é sua cidade, esse é seu progresso. Potes de poluição revestidos de alegria.
Amanhã é logo ali. Ontem esteve por aqui não tem muito tempo. E se não houvesse tempo ? Você ia ficar parado, para sempre. Olhando pra trás, por cima do próprio ombro, vendo a poeira que ergueu na estrada. A poeira passa. A poeira abaixa. E você não para de olhar.
O mesmo cachorro mija no mesmo poste todo dia. A mesma mãe busca o mesmo filho no mesmo colégio todo dia. Todo dia a mesma igreja acusa outra da mesma heresia. Todo dia o dia é dia, e ninguém vê que, não é o mesmo cachorro, não é o mesmo poste, a mesma mãe, o mesmo filho, o mesmo colégio, a mesma igreja, a mesma heresia. Não é o mesmo dia.
Um avião passa na mesma rota no mesmo horário. Da janela do meu banheiro eu vejo sua luz piscando, no céu cinza da noite. Vermelho, verde, vermelho, verde, vermelho, verde. Nuvens amarelas, fumaça e imensidão. Venta lá fora, entra o frio pela janela, fecho a visão do céu. Amanhã ele passa de novo. Se não cair, se não sumir, se quiser, se puder. Se passar. Amanhã ele passa de novo.
Eu queria conseguir tirar fotos de metade das estrelas que eu vejo no céu. Eu queria sonhar metade das coisas que já pensei em sonhar. Eu queria ser metade do que eu queria ter sido. Ter metade do que eu queria ter tido.
Eu te vejo daqui. Eu te vejo de todo lugar.Eu te vejo aqui. Eu te vejo em qualquer lugar. Mas moça, entenda. Isso não é sobre o que eu quero dizer. É sobre o que você quer entender. Não é sobre o que foi, e o que é pra ser. É sobre tudo que acontecer.
Às vezes penso no seu cheiro, moça. Às vezes penso em você, moça. Mas tudo movimenta. Tudo envelhece. Toda sensação, todo aborrecimento. É luz, é ingenuidade. Já senti falta de você, moça. Tanta sensação, tanto aborrecimento. Mas eu envelheci. E comigo o sentimento.
Daqui eu vejo o vento frio lá fora. As pessoas com frio. Os cachorros com frio. Eu com frio. Mas eu não estou lá fora. Eu não estou em lugar nenhum. Isso não é sobre mim, moça. Não é sobre você. É sobre quem ler. É sobre qualquer um que tente ser. É sobre qualquer coisa que acontecer.
São três da manhã e eu sentado no meu escuro. São três da manhã, e eu não saí de cima do muro.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Dez pras duas.

Tem um pinheiro na frente do poste. Coisa mais engraçada, um pinheiro em Goiânia. Um poste aceso em Goiânia. Quando pequeno sonhava com neves, Papai Noel, renas e pinheiros. Mas eram pinheiros diferentes. Aqueles eram bonitos. Eram pinheiros dos livrinhos infantis. Eram vários cones verdes, com luzes de natal. Esse pinheiro é estranho. Tem uma sombra estranha. Tem uma cor estranha. Tem um tamanho estranho. É um pinheiro em Goiânia, isso é estranho.
O tempo passa para pinheiros. O tempo passa para postes. Da minha janela eu via tudo. Via a luz, via a sombra. Via galhos crescendo, e galhos caindo. Vi natais. Vi carnavais. Vi promessas. Vi alegrias e vi tristezas. Tudo entre o pinheiro e o poste. Eu saía, eu voltava. Eu ia, e eu vinha. Eu nunca saía do mesmo lugar. Futebol, bicicleta, beijos, abraços, aviões, ônibus, músicas e filmes, triângulos e retângulos. E sempre lá, até quando nevava no cerrado, o pinheiro e o poste.
Da minha janela eu via muitos postes. Da minha janela eu via muitos pinheiros. Mas nenhum par de postes e pinheiros era como esse meu par. Nenhum pinheiro era tão estranho. E nenhum poste era tão alto. Eu não me lembro de quando plantaram esse pinheiro. Não me lembro de quando fincaram esse poste no chão. Lembro que estão aí, desde sempre. Pinheiro e poste. Concreto e madeira. Eletricidade e natureza.
Pipas se prenderam no meu pinheiro. Galhos caíram. Nomes foram riscados e apagados. Fios foram puxados do meu poste. Casas foram erguidas, e derrubadas. Por várias vezes, iluminou a noite. E eu da minha janela, observando tudo ao longe.
Nunca fui muito próximo de nenhum dos dois. Nunca conheci completamente nenhum dos lados. Nunca conheci. Mas era o meu par. Por mais desconhecido, sombrio, e assustador que pudesse ser, era meu, desde sempre, deveria ser para sempre. O tempo passa. Para pinheiros. E para postes. Ambientalismo, urbanização, desmatamento, supervalorização, desacato, superinformação.
O poste se empenou para um lado. Se afastou do pinheiro. O pinheiro cresceu novos galhos, em outras direções. Pareceu que tinham se esquecido que tinham suas bases no mesmo lugar, no mesmo pedaço de terra. E eu da minha janela.
Eu não sei o que dizer sobre meu pinheiro e meu poste. Eu não sei mais o que dizer sobre minha janela. Não sei mais o que dizer sobre as ruas, sobre as lâmpadas dos postes, sobres os ratos do esgoto. Eu já tive tanta certeza da minha janela. Eu já tive tanta certeza de qual rumo iriam meus galhos. Eu já sonhei tanto com o que eu iria iluminar com meu poste. E hoje eu não sei mais. Não sei. Não mais.
Lembro de tantos ditados da época de criança. Lembro de tantos velhos. De tantas pessoas. O que faz cada um diferente de mim, diferente de si mesmo ? O que difere cada poste ? O que marca cada pinheiro ? Me disseram que eu cresci. Mas minha janela continua ali. Empoeirada. Vidros arranhados. Do lado de fora da poeira eu vejo meu poste. Eu vejo meu pinheiro. Eu vejo a ordem, eu vejo o caos, eu vejo a dor e eu vejo o amor. Eu vejo o que nunca vi, vejo o que nunca verei. Vejo desejos, vejo anseios. Vejo um falso pinheiro goiano. Vejo um escuro poste de rua. Procuro brilho. Procuro luz. Procuro a união, a parceria. Procuro. Não acho.
Minha janela já foi mais do que janela. Minha janela já foi meu retrato, meu espelho. Eu já fui mais do que sou hoje. Já esperei mais do que espero hoje. Já quis mais do que quero hoje. Tive mais pressa, tive mais tanta coisa que não me lembro hoje.
Hoje eu não sei mais separar poste de pinheiro. Não sei mais separar muita coisa de tanta coisa. Mas aí, eu me lembro. Eu não acredito mais em pinheiros falsos do cerrado. Eu não acredito mais na luz fria de postes sem lâmpada. Eu não tenho mais fé nas mentiras de outras épocas. Já não acredito mais em pinheiros, neve, renas e Papai Noel. Já não acredito em mais nada.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Centro/Garavelo. Seis da tarde.


Eu falei pra minha mãe no dia que comprei essa calça. Esse bolso é fundo demais. Cadê minha carteira ? Sei que está ali, só não alcanço ela. Uma moça entra no ônibus. A moça. Ela insinua a passagem, saio do caminho, ela roda a catraca. Seu cabelo passa quase em meu nariz. Passou quase em minha alma. Um cheiro que não foi embora. Ficou no ar, ficou em meu nariz.
Ela sumiu no ônibus cheio. Peguei a carteira, rodei a catraca, fui pro mesmo lugar que sempre fico. Tentei achar ela, não achei. Lembrando de seu cheiro, tentando lembrar de seu rosto. Liguei minhas músicas, liguei minhas paranóias, liguei outro mundo. Gente vai, gente vem. Não lembrava mais que cheiro era. Seria cheiro de coberta ? Cheiro de perfume, cheiro de xampu ? Não lembrava mais.
O ônibus balançou, e em meio aos outros, eu vi seu rosto. Sentada, inerte, aérea. Fones nos ouvidos, olhos nas janelas. Agora eu já não sabia se era mesmo perfume ou se eu imaginei um cheiro. Tão isolada do resto, tão solta. O que estaria ouvindo ? Pra onde estaria olhando ? O ônibus balançou, e eu perdi seu rosto.
Alguns pontos se passaram, algumas várias poucas músicas. Quantas,quais, não me lembro. Talvez nem faria diferença se não passassem. Eram quase uma trilha sonora de um momento que parecia tão perdido. Pensava em muitas coisas. “Você vem sempre aqui ?”, ou “ essa passagem é sua ?”. “Você já assistiu Madagascar ? Ou qualquer outro desenho. Filmes, séries, gibis”. Vontade de ter toda a habilidade social que falta às vezes. Quase sempre.
O ônibus tremeu, e em meio à tantos outros, eu vi seu rosto. Mesma expressão, mesmos fones, mesmos olhos. Olhava para o celular agora. Mensagens, twitter, sabe-se lá o que era. Me peguei olhando para o cabelo novamente. Tentava lembrar que cheiro era. Tinha sido algo tão diferente, tão destacado dos cheiros da cidade, do ônibus, da mesmice de todo dia. Alguém me pergunta as horas. Preciso ouvir três, quatro vezes a pergunta, para me soltar. Seis e cinquenta. Obrigado. Me virei novamente. Os passageiros mudaram e eu perdi seu rosto.
Eu falei pro meu pai no dia que comprei essa calça. Esse bolso é muito fundo. Não alcançava meu celular. Desisti dessa vez, deixei como estava. Olhei se a carteira ainda estava no outro bolso. Procurei as chaves na mochila. Tudo no lugar. Olhei pro meio do ônibus, procurei um rosto. Procurei em vão.
O ônibus freiou, e em meio à tanta gente, ela viu meu rosto. Meio segundo para pensar em mil reações. Não tinha ido até ali pra virar o rosto e fingir não olhar. Um sorriso, meio com medo. Um sorriso de volta. O ônibus arrancou, e nossos olhos se perderam.
Um apito de descida na próxima parada. Me perguntaram as horas de novo. Só fui lembrar de responder quando estava quase em casa. Seria ela a descer ? O ônibus freiou. Não a vi no banco de antes. Vi seu cabelo de relance, passando pela porta. Ela desceu. Sinal fechado, ônibus ainda parado. Ela saiu por trás do ônibus. Olhei pela janela. Ela me viu, eu vi ela. Um sorriso, e um tchauzinho. Nome, telefone, endereço, email, facebook, qualquer coisa, tanta coisa. Nada. Sorri de volta. Em meio à tantos carros, tantas motos, tantos pensamentos e tantas coisas, a perdi de vista. O sinal abriu, o ônibus acelerou, e ela ficou. Eu fui. Ou ela foi e eu fiquei.
Até qualquer dia desses, em outro encontro acidental. Até nunca mais, moça cheirosa.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Bit, byte e evolução

O tempo muda o mundo
O mundo muda, nada!
Muda muito em muito pouco
O tempo mudo nos faz de louco

Os tempos mudam
A gente se muda
E se manda no
meio do mundo

Em busca de informação
Bit, byte, mega formatação.
Em nervos de aço,
Em busca de espaço e evolução.

Nos trouxe o tempo num pote miúdo
O que era moderno e já não é mais
O tempo bate nas costas do mundo
De giga e tera ja não terá paz!

De lá pra cá, o tempo.
Nem mudou muito
Muda muito, não muda nada.
Muda tanto e tão pouco

Muda tão muito, de pouco em pouco.
Em pouco tempo o muito é pouco
E o pouco, muito pouco muda o muito
E o muito muda o mundo muito pouco.

- Henrique Napolião Barreto

quarta-feira, 13 de junho de 2012

De tantas saudades, guardei o seu sorriso.

Deve fazer um ano. Dois. Seis meses. Não sei mais. Acordava e sentia tudo tão igual. Tudo tão do mesmo jeito que sempre tinha sido tão comum. Devem ser uns 4 meses. 2 semanas. Tantos anos iguais. Tantos anos de um mesmo jeito. Tantos anos indiferentes. Tantos anos. Acho que fazia frio. Mas eu me lembro de estar suando. Não me lembro tão bem mais. Iria de bicicleta. Fui de carro. Nem sabia aonde era. Nem sabia pra onde ia. Nem sabia de merda nenhuma. Achava varias coisas. A falta de preparo psicológico típica da idade. Mas se dizia não ter essa idade, por dentro. Jurava carregar consigo tanto. Jurava tanto. Devem ter sido algumas horas. 19 minutos. Em um empelotamento de segundos, achou ter mudado o que não mudara em tanto tempo. Achava demais, sabia de menos. Talvez dias, talvez um só. E nessa ilusão se encaminhou. Não estava à frente. Não era melhor. Nunca foi. Mas que desgosto, que decepção. Que falha nas expectativas. Marmorarias ao lado de igrejas, bares em frente às escolas. Pensa tanto em como tudo é e em como tudo se transforma. Não vê mais diferença entre a falha e a ação. Tantos sonhos, ao longo de tanto chão. Nem anda tanto. Nem sabe tanto. Nada é tanto. Tanto é tão pouco. Sonha com um dos carros do jornal. Alucina com as mulheres do cinema. Adrenalina ao atravessar a ponte sobre a marginal. Quer morar num dos prédios bacanas que vê no horizonte. Tão bonitos, altos. Atravessa um viaduto, vê um restaurante, vê um bar, vê um hospital, vê tantas pessoas. Vê uma menina. Parada na esquina. Não é mais menina. Mas se lembra dela. estudaram juntos. Ele foi em seu aniversário. Ela no dele. Eram amiguinhos do tipo que correm atrás de pombos no pátio do colégio. Mas ela não vê ele. O insul-film mental escurece suas lembranças. Quantos anos fazem ? Dez ? Sete ? Mais do que qualquer um gostaria. A esquina some, na fumaça do escapamento do ônibus. Agora vê uma praça. Um prédio nela. Vazio. Mas de luzes acesas. Lá em cima tem um heliporto. Lembrou que nunca viajou em um helicóptero. Deve ser divertido. Numa linha de pensamentos estranha e desconexa, lembrou que nunca tinha pulado de para-quedas. Lembrando tanto com tão pouco. Desce do ônibus. Contorna a dita praça. Um acidente, uma viatura. Lembra de quando foi assaltado. Gostava tanto daquele celular. Segue andando. Vira na avenida. Os sinos da igreja tocam. Nem sabia que essa igreja ainda tinha sinos. Olhou para trás para ver a torre do relógio. Não parou de andar. Trombou com alguém que vinha na direção oposta. Alguém que não via a igreja, acidentes, viaturas. Só via o relógio no pulso, e a hora de chegar em casa. Talvez a mulher estivesse esperando. Talvez atrasado para buscar o filho no colégio. Talvez tantas coisas. Talvez eu nunca mais o veja. Talvez ele me encontre pela rua e aponte o dedo em meu nariz ao dizer "eu lembro de você". Talvez. Mas o que eu sei é que ele me xingou. "olha pra frente, filho da puta". Não se pode nem olhar para a pouca beleza da simplicidade que ainda resta nessa cidade. Continua andando, está escurecendo. Os faróis dos carros já estão acesos, formando um abstrato rio de luzes amarelas que vem, e vermelhas que vão, por baixo da ponte. Sente medo de cair, em uma cena de filmes, rolando por cima de caminhões. O semáforo abre para pedestres e ele acorda do devaneio ao desviar de um motociclista que tenta aproveitar os últimos suspiros da luz verde. Quase se tornam seus próprios suspiros finais. A descida se estabiliza, até se tornar uma subida. Uma inclinação imperceptível do corpo para a frente, para vencer a inclinação. Bem pequena, mas seus joelhos a sentem. Lembra, em meio às pequenas dores, de quando corria em torno da casa de sua avó. Caía, e ralava seus joelhos. Saravam tão rápido. Percebe que talvez só não se importasse tanto com a dor. Sente que não é mais o mesmo que já foi. Sente medo do que será. Sente medo da dor. Sente medo. Mas continua andando, e, em passos largos com as grandes pernas, se esquece da pequena dor. Amanhã deve se lembrar dela. Atravessa outra praça, maconha e um bar entre cartazes de "legalize já" e "greve já". Revolucionários de Facebook. Che Guevara via twitter para iPhone. Chega em sua faculdade. A praça parece um 8. Infinidade de problemas. Um professor de greve com a greve. Um pombo dourado, turma do centenário. Sempre acha esse pombo tão exagerado. Tão sem sentido. Mas, o que é sentido pra quem vê prédios e pensa em rios de faróis ? Entra na sala, mochila na mesa, andou depressa, está suando. Banheiro, espelho, pia, água, papel, ar condicionado. Pensa nos grevistas. Alunos em greve. É fácil fazer greve pra não vir na aula. Aula do mesmo professor da tantas outras quartas. Times rivais, sempre com piadas. Ele se gaba da nova contratação, eu digo "meu time vai ganhar a serie B". Aula começa. Xerox, sala de novo. Ele não faz chamada, alguns desertam. Sai da sala, um barulho ensurdecedor. Tambores e apitos gritando pela greve. Interrompem a aula. Um professor se entrega à repressão dos grevistas, e dispensa sua turma. Não o meu. Não, ele não. Ele tem cara de ser aquele aluno da primeira série que anotava para professora o nome de quem conversava. Tem uma boa carreira. Tem um bom casamento, tem livros publicados. Pensa se algum dia chegará a um ponto semelhante. Se recorda de seu pai, que sempre disse algo que pode ser resumido em "o sucesso vem pra quem vai até ele". Liga isso a um debate de aulas anteriores. O que é sucesso ? Já foi criticado, tantas pequenas dúvidas, tantas frases de efeito. "Você tenta parecer inteligente com esse jeito de pseudopoeta, de intelectual frustrado. Você não é inteligente". Nunca disse ser. Nunca se gabou de ser. Parece sertão divertido ser levado para partidos de esquerda ou de direita cegamente, como tantos outros. Incorporar um discurso alienador à sua doutrina pessoal. Viver a expectativa de seguir bakuninistas no twitter. Devem ter sido quinze horas. Foram duas. A aula acabou. Greve incerta. Tão incerta quanto o futuro do país. Tão incerta quanto os destinos dessa geração. Todos indo embora. É quarta-feira, mas o amanhã não existe mais. Não se tem aula, e isso é o mais distante que o aluno pensa. A noite vai virar festa. Ou não. Preocupação de tantos pais, descaso de tantos outros. A praça ainda cheira maconha. Deviam fazer cartões postais dessa praça, com um cheiro típico. Cheira também esgoto, terra revirada em função das reformas. Outra caminhada para pegar outro ônibus que não passa no asfalto mal acabado. A barriga lhe engana, sente vontade de comer. Imagina a sua geladeira, esperando para ser aberta. Lembra do seu irmão. Ele com certeza deve ter comido tudo. A rua fica muito escura. Atravessa a escuridão, algumas encaradas no meio das sombras. Não sente medo do escuro. Não sente medo do irreal. Sente medo do que existe, do que é, do que foi, do que são. Se perde, pensando. Pensando, figurando, imaginando. Viajando, lembrando. Tanto, tão pouco. Seu ônibus vem chegando, não consegue ler o letreiro através das lentes já arranhadas de seus óculos. Confirma que é aquele ônibus, entra, passa a catraca. Não está cheio. Não está vazio. É mais um ônibus. Com mais um monte de gente. Vindo de um monte de empregos. Com um monte de filhos. Que estudam em um monte de escolas. Com um monte de professores e professoras. Que pegam um monte de ônibus. Senta ao lado de duas meninas, não tão meninas, mas com assunto de meninas. Tenta ouvir o que elas conversam. Não é fofoqueiro. Só queria se distrair, se destacar da realidade de quem está indo embora perto da meio noite em um ônibus. Perde a linha da conversa, seu fones de ouvido estão mais interessantes. Músicas que falam de tantos lugares e tantas vidas. Mas só tem uma. Pensa mais uma vez, talvez a quinta ou sexta em seu dia, na inutilidade de seu dia a dia. Pensa em como seria aquele ônibus, sem mais um passageiro, sem mais um dos tantos outros montes. Seria mais um ônibus, com outro aluno, com outra pessoa. Devem ter sido quarenta minutos. Vinte ? Uma hora, talvez. Se perdeu nas músicas, e na admiração da beleza fria da noite urbana. Semáforos piscando em tons de laranja em ruas desertas. Olhos piscando em tons de desgosto e descaso em janelas de ônibus. Chega em seu terminal. Lembra de um dia em que se encontrou com amigos ali. Lembra de outro em que viu uma moça linda ali. Nunca mais a viu. Nunca mais os encontrou. Quem seria ela ? Aonde estariam eles ? Passa a catraca final, se depara com a imensidão de uma avenida mal iluminada e deserta. Se sente em casa. Cresceu ali, andaria de olhos fechados sem tropeçar nas deformações de suas calçadas. Sabe em quais casas existem cachorros que assustam os pedestres, e em quais casa existem velhinhas que ficam na porta com um ar de "vou devagar porque já vivi demais". Por um breve momento, depois de seu dia, inveja a velhinha. Um banco vazio, com ninguém além de um guarda em seu interior. Há sete, oito, talvez cinco horas, quando foi à aula, o mesmo banco mais parecia um formigueiro. Pessoas se trombando e se xingando, sem nem lembrar dos rostos alheios. Se lembrou de quanto odiava lugares tumultuados. De quando era pequeno, e ia para feiras, e não enxergava nada além da mão de sua mãe lhe puxando em meio a tantas pessoas, tantas barracas. Atravessa a rua, desvia de alguns bêbados, cumprimenta o mesmo gato preto de todos os outros dias. Lembra-se de um livro que leu, quando pequeno, de bruxos que tinham o poder de se transformar em animais. O mesmo gato, do mesmo jeito, no mesmo horário, todos os dias. Tinha vontade de sentar no meio fio e oferecer um chocolate para o tal gato. Mas nunca parava de andar. O joelho ressuscita, dá uma pontada de dor, para não deixar ser esquecido. Lembra da caminhada de fim de tarde. Dos sinos, rios, luzes, faróis, amigas, amores. Está em casa. O poste está queimado de novo. Com a luz do celular, acha sua chave dentro da mochila. Abre seu portão. Seu cachorro o recebe com a mesma alegria retardada de sempre, mostrando já ter esquecido a briga da manhã. Tenta lamber seus pés, mas ele não deixa. Está cansado demais para tentar se divertir com um cachorro. E ainda tem cheiro de gato preto da rua, só arranjaria confusão. Passa pela porta, entra em sua casa. Não acende as luzes, já conhece bem seu lar. Fecha os olhos, anda até o quarto, acende seu abajur. Seus pais já dormem. Há alguns dias não vê o pai, seus horários não batem mais, faculdade, trabalho. O preço da vida "adulta". Conversou com a mãe antes de sair. Ela ronca, como alguém que estufou a barriga com torresmo e refrigerante antes de dormir. Nem refrigerante ela bebe. Devem ter sido alguns momentos. Alguns, bem poucos. Joga sua camisa na cama. Lembra-se do que falou com a mãe. Que bagunça é essa, meu filho ? Não se pode ser assim. Saiu para a aula, pensando que quando chegasse a bagunça e a mãe ainda estariam lá. Mas e se não estivessem ? Não gosta de trabalhar com suposições negativas. Mas a certeza é algo tão idiota. É tudo tão idiota. Ele é tão idiota. Senta em sua mesa, joga chaves e carteira em cima da cama. Quicam e caem no chão. Ele se levanta para pegar. Se lembra da sua avó. A mesma da casa onde ralava tanto seus joelhos. "Preguiçoso trabalha em dobro". Dá uma risada. Liga seu computador, um momento de descanso em meio à tanta movimentação. Nem é tanta, mas ele gosta de dramatizar. Notificações, emails novos. O relógio apita a meia noite. Já é outro dia. Já são outros momentos. Nesse apito, alguém morreu. Nesse apito, alguém nasceu. Nesse apito, tanto aconteceu. Quantos outros apitos não apitaram ao mesmo tempo do seu ? Tantos apitos, quantos apitos, tão poucos apitos. Apitos. Segunda série, festinha de aniversário no recreio. Deixou o apito cair no chão. Pisaram no apito. Pequenas coisas, das quais ninguém se lembra. Pequenas definições do que se dá de cada pessoa. Ouve barulhos na rua, já se acostumou. Ouve músicas. Quase sempre as mesmas de quase todo dia. Mas sempre as ouve como se fosse a primeira vez. Pensa nos trabalhos da faculdade, no dinheiro acabando, naquela moça que não soube convidar para sair. Pensa em dormir. Pouco sono. Deita assim mesmo. Amanhã vai ser outro dia, ele vai ser outra pessoa. Todos serão outros, os ônibus não passarão sobre as mesmas pedras, os cigarros não serão fumados com o mesmo prazer, as cervejas não serão tomadas com a mesma saudade. Lembranças de tantos carnavais, tantas fantasias. Será tudo diferente. Mas vai ser outro dia, ninguém se importa. Deseja boa noite ao ar, alguém que possa ouvir. Mesmo não ouvindo, gosta de pensar que alguém lhe disse o mesmo, à distância. Tanto a ser, tanto a fazer. Tanto. Deve ter sido um dia. Vinte e quatro horas. Toda a vida. Na porta do bar, fica escuro mais cedo.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Por uma janela

Aqui é tão claro. Mas logo ali fica tão escuro. E logo à frente, uma mistura de sombra e luz, fumaça e poeira. Fumaça e poeira, sombra e luz, ouro e suor. Era tudo tão esperado. Era tudo tão descolado. Era tudo proibido. E agora? "Todo mundo deseja o que não tem". Mas não era não ter. Poderia ter. Mas toda a proibição social torna tudo mais divertido, atraente. Por uma janela, não via seus sonhos. Via um reflexo sujo e embaçado de si mesmo. Um reflexo tão diferente do que se vê em um espelho. Uma expressão que antes não seria capaz de se imaginar tendo. Canta tanto as mesmas canções, pensa tanto as mesmas reflexões. Ouvindo pampa no iPhone. Pampa, Sampa, tanta pompa, buraco sem uma tampa. Faculdade, tantas janelas. Rua, sala, quarto, cama, sono. Não era esse o itinerário programado. Por uma janela, eu via uma sala. Essa sala tinha suas próprias janelas, que dariam vista a tantos outros lugares. Não tinha idéia de como chegar nessa sala. Todos desejavam tal sala. Era tão desejada, acabou sendo desejada por mim também. Já almejei salas maiores, mas riram de mim quando contei minhas ambições. Mudei de sala, quebrei as janelas, não pedi mais opiniões. Não acreditavam, não acreditam. Eu não acreditava também. Acreditar era tão complicado. Sempre foi tão mais fácil só "ir". Mas ir ficou tão deprimente, sem fé nenhuma. Um condicionador de ar resfria a sala. Mas já é tão frio lá fora. Tão frio, úmido, escuro. Tão fora. A luz me passa um conforto, uma segurança inexplicável. Mas toda fonte de luz me parece tão frágil, tão pequena. Toda fonte de luz, todo tanto de luz. Seguro. Mas longe. Quatro extremidades de um mesmo corredor. É reto, é linear, é direto. Deveria ser tão simples, fazer tanto sentido. O final dele é logo ali. Mas há algum tempo o logo ali não parece tão logo assim. "Nem tão longe que eu não possa ver, nem tão perto que eu possa tocar". Ao longo desse corredor, alguns enfumaçados, outros com fígados dourados, narinas de leite em pó, veias de adrenalina. Nada disso me interessa. Mas nem nisso acreditam. "Você vai aprender, menino". Caralho, eu não quero aprender. Seria tão bom poder não mudar, ter um corredor com minhas janelas, e não ser um passageiro em um trem que não leva a lugar algum. Goiânia é muito grande pra quem não tem ambição. Pra quem sabe o que quer, ela cabe na palma da mão. Em 94, o Brasil era tetra, e os brasileiros eram patriotas. Em 2012, não se sabe nome de ministros, votos são por obrigação, e patriotismo é amistoso com os "states". Quantas bananas eles terão que jogar em nossas cabeças até que aprendamos? Começo falando de mim. Termino falando de ninguém. Nunca termino, não sei quando começo. Ponto final vira vírgula, um silêncio, reticências. De tantas certezas, quais ainda tem? Amigos, ações, reações, curvas do corredor. Tudo fica pra trás. Será que fica? Será que não? "O que tiver de ser, será"? Não há muito para ser então. Tolos jovens nostálgicos, quebrando janelas com os entulhos de suas próprias esperanças.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Ralo

Uma vida que já foi sonhado. Sonhos que já foram desacreditados. Ilusões que se realizaram. As mesma metades, que antes não pertenciam ao meu par, com tanto atrito, tanto desgaste, acabam se encaixando.
Chove, molha. Venta, cai. Sol, seca. No barulho, ensurdece. No silêncio, enlouquece.
Não cria, não age, não conversa, não sabe, não sorri. Medo. Incerteza.
Mas isto já aconteceu antes. O que ele fez ? Como saiu do buraco ? Realmente saiu ? Aonde ele se perdeu ? Quando que tudo deixou de ser tão simples e se tornou tão incompreensível ? Em qual das curvas ele se virou para o lado errado ? Pensou tanto antes de tomar cada decisão, teve tanto medo de errar. Buscou dar tantas certezas à tantas pessoas, que agora não as tem mais para si mesmo.
Se afastou tanto, com medo de ser ruim para tantos. Mas o verdadeiro medo era de ser ruim para ele mesmo. Sempre lhe disseram ser tão bom. Sempre lhe disseram ser tão certo. Mas o que é certo ? O que é bom ? Perdeu essas noções há muito tempo. Seria mesmo um fruto do acaso ? Alguém gerado por coincidências e ironias ? Se sim, acaso de quem ? Se não, o que realmente é então ? Se é que é um pedaço do que já foi.
Mas o que foi ? O que nunca completamente se realizou ? O que cresceu atrás de sombras ? O eterno bom futuro ? Ou o futuro simplesmente não foi tão brilhante ?
Seria mesmo tudo que lhe disseram que seria ? Seria mesmo tão bom quanto lhe prometiam ? Seria tão fácil ? Tão direto, tão simples, tão objetivo. Não era fácil. Era torto, era complicado, era abstrato. Talvez tudo não fosse tudo que deveria ser.
Talvez fosse como deveria. Ele só tinha as expectativas erradas, alienadas. Diziam que nada era simples, que a vida era cruel. Que crueldade é essa ? Que rumo sem sentido é esse que as coisas acabam sempre tomando ? Quem uma vez já teve solução para tudo, havia se esquecido de todas as respostas. Não se culpava por não sabê-las. Mas sim por não saber aonde essas respostas haviam ficado. Se deixou levar por tempo demais. não sabia mais como recuperar o controle. Já teve o controle ? O que é controle ? É acordar às cinco da manhã e ter todo o seu dia "planejado" ? Mas nada é planejado. Nada quase sempre é simples. E quase tudo quase sempre é tão sem aquela alegria e cor que diziam ter.
Com um sorriso, esperava outro em retorno. Com uma piscada, talvez um sinal. Não sabia de que. Quando entendeu como usar essas "piscadas", entendeu que a vida havia mudado. Como em uma cena de filme em que repentinamente tudo vira, e o teto se torna o chão, e o chão é onde estão as estrelas. Tudo se torna inverso, reverso, controverso, sem nenhum aviso ao personagem. Talvez grande parte da aventura esteja em se acompanhar a tragédia desse personagem. No filme, é divertido. Aqui, a vida era o roteirista sacana e ele era o personagem de uma história da qual ele não era o dono.
Se sentia como o último paciente. O último passageiro. Alguém que está ali para ver as luzes se apagarem. Esperou tanto para vê-las acesas. Teve pressa, e as viu cedo demais.
O menino que queria ser homem. O garoto que se perdeu.